sábado, 4 de agosto de 2012

Morreu GORE VIDAL



Na imagem: Gore Vidal, Tennesse Williams, JFK


Entrevistei Gore Vidal, em Lisboa, para o Jornal Público, em finais dos anos noventa. Aqui fica, de novo, essa conversa:



VIDAL, O MAGNÍFICO




Gore Vidal nasceu em 1925 na Academia de West Point, faz parte da “nobreza” norte-americana e intitula-se o “biógrafo oficial” do seu país. Do avô, o senador cego Thomas Gore, herdou a habilidade para escrever e um fascínio pelo poder. Em 1948, a publicação de “The City and the Pillar”, um romance abertamente homossexual, valeu-lhe uma fama pontuada por controvérsia. Em “Palimpsest”, um livro de memórias publicado em 1997, fala do pai, piloto e director de uma companhia de aviação que foi o grande amor da vida de Amelia Earhart, da mãe, uma “socialite” que ele detestava, dos laços familiares que o ligavam a Jackie Kennedy e a “Camelot” e das suas inúmeras amizades, entre as quais se contaram Tenesse Williams, (The Glorious Bird) com quem partilhou um apartamento em Paris, Truman Capote, Jack Kerouac, com quem passou uma noite de sexo “inexplicável” no Chelsea Hotel, Peggy Guggenheim, Paul Bowles, Marlon Brando e outros grandes deste mundo.
Habita uma villa num penhasco sobre o mar Tirreno perto de Ravello, uma cidade italiana por onde passaram Gide, D.H e Frida Lawrence, Maynard Keynes e Lytton Strachey e onde Stokowski e Greta Garbo tiveram um “ninho de amor”. O cenário é o de um mundo clássico pagão, hedonista e iconoclasta que Vidal admira e recorda com certa nostalgia. (Em 1964 publicou “Julian”, a história do imperador romano apóstata que tentou restaurar o paganismo). A sua ligação com Hollywood leva-o a manter uma outra casa, em Los Angeles, onde vai regularmente para estar com os amigos, Paul (Newman) e Joanne (Woodward), cujo casamento apadrinhou. Tem outro afilhado, o filho de Tim Robbins e Susan Sarandon.
Gore Vidal e o seu companheiro de mais de 50 anos, Howars Austen, possuem já duas campas reservadas, lado a lado, no cemitério de Rock Creek, em Washington. Nas respectivas pedras estão gravados os nomes e as datas de nascimento, 1925 e 1928 respectivamente, com um hífen à frente e o espaço para colocar as datas finais. Nesse mesmo cemitério está enterrado Jimmie Trimble, que morreu com 20 anos em Iwo Jima e foi o grande amor de Vidal, a inspiração para o “A Cidade e o Pilar”, que lhe deu fama e proveito, alguns dissabores e muita notoriedade. Este detalhe, aparentemente sem importância, ajuda a compreender a forma como Vidal encara a sua própria história.
Vidal tem feito muito cinema e televisão e sabe o que cativa audiências, usando e abusando do humor para fazer as suas vitríolocas críticas à sociedade contemporânea e ao poder estabelecido. Gosta de repensar a História e contestar tudo o que já foi dito, sendo a política uma das suas paixões, algo que ele herdou do seu avô que criava galinhas nos terrenos da casa em Rock Creek Park, onde Vidal viveu até aos dez anos, caiu em desgraça durante a administração Roosevelt e chegou a ser julgado (e ilibado) por tentativa de violação na pessoa de “uma tal Minnie Bond”, num hotel em Washington. T.P. ou “Dah”, como lhe chamava o neto, casou com Nina por gostar de lhe ouvir a voz, ignorando o facto de ela ser alcoólica, uma característica herdada pela detestada mãe de Vidal. (“Tenho que admitir que, para uma criança, a única vantagem de ter uma mãe alcoólica é que tem acesso, prematuramente a muitas informações preciosas” Gore dixit ) O senador Gore, que inculcou no neto o “sentido da honra” e a admiração pela coragem pessoal, ensinou-lhe também como navegar nas águas turvas da política e transmitiu-lhe o sentimento de que pertencia a um diminuto grupo de seres de excepção numa sociedade que se considerava democrática. Vidal diz que herdou “a capacidade de detectar as notas falsas nas árias com que os guardadores de rebanhos embalam as nossas ovelhas”, querendo dizer com isso que rejeitou sempre as demagogias e nunca embarcou em promessas vãs.
Em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, com o seu humor corrosivo habitual, perante uma audiência numerosa e cúmplice que batia palmas e ria educadamente nos momentos certos, baseou a sua conferência na classificação de Giambattista Vico, um filósofo napolitano (1668-1744) que dividiu a nossa civilização em três fases cíclicas, a teocrática, a aristocrática e a democrática, às quais se seguiria o caos. Deste emergiria uma nova era teocrática e iniciar-se-ia um novo ciclo. A História, as suas incongruências e absurdos, é um campo fértil para o exercício do pensamento deste homem que, em “Palimpsest”, um “romance de amor”, se define com alacridade como alguém que “… devido a uma fria natureza e à recusa em conformar-se com os calorosos valores familiares, (está) condenado a ser o eterno “outsider”, alguém que não se deixa apanhar pelas armadilhas do “sistema”.


Helena Vasconcelos: Na Gulbenkian, como em muitos outros lugares, há sempre multidões a ouvirem as suas palavras. Qual a sensação de ser tratado como um ícone pop, como uma espécie de Madona do pensamento? Como é que se sente, rodeado de todo este “som e fúria”.
Gore Vidal : (Risos). É um fenómeno que acontece em todos os países. Não compreendo as multidões. Não me considero um autor popular, não sou o Stevie (Stephen King)…



H.V. : A razão do seu sucesso tem a ver com o facto de os seus livros terem como tema o sexo, a violência, a corrupção, o dinheiro, o poder, o cinema, conceitos que fascinam e assustam pessoas e que são a base da nossa sociedade?
G.V. Os meus livros não são “romanzi di consumo” mas tenho feito muito cinema e televisão e escrevo sobre assuntos que interessam às pessoas. Não sei como, generalizou-se a ideia de que tenho muita graça.


H.V. : Quer dizer que usa e abusa do humor para fazer críticas violentas, como por exemplo em “Myra Breckinridge”?

G.V. Limito-me a dizer o que penso, e acho que penso verdadeiramente, o que é uma combinação rara. As figuras públicas são uma fraude, só dizem disparates e, na realidade, ninguém as quer ouvir. Noam Chomsky que, tal como eu, é um dos poucos radicais da América, tem razão, apesar de ninguém o perceber, quando diz que a direita e a esquerda são termos que já não têm sentido, tal como o socialismo. Noventa e nove por cento da população pertence ao status quo, são pessoas que constroem carreiras. O resto são os tais radicais, com atitudes preconizadoras de mudanças radicais, que dizem qualquer coisa que pode ter interesse. É por isso que, mesmo sem saberem porquê, as pessoas vêm ouvir-nos.




H.V. : Chomsky fala do poder da linguagem e tem referido, sistematicamente, a manipulação das pessoas pelos “media”…

G.V. Chomsky é sistematicamente boicotado no Estados Unidos onde há uma censura tão severa como nos outros países, ao mesmo tempo que se proclama a existência de liberdade para se dizer e escrever o que se quer. Tudo isto é verdade, como é verdade que há liberdade para não se publicar determinadas coisas ou de não se deixar certas pessoas aparecerem na televisão. Ou, melhor ainda, há a liberdade de ridicularizar pessoas e ideias. É por isso que não gosto da imprensa. Têm todas as razões para nos tornarem grotescos, para que não sejamos ouvidos. O “New York Times” nunca entrevistou o Chomsky e, como represália, eu nunca deixei que eles me entrevistassem a mim…




H.V. : É uma espécie de guerra?

G.V. Sim, uma guerra que já dura há cinquenta anos, desde 1948.




H.V. : Para os conservadores é considerado um perigoso revolucionário, para os mais progressistas um perfeito reaccionário. É divertido, para si, ser julgado desta maneira ?

G.V. Essas pessoas não estão a pensar, estão apenas a responder de uma forma emotiva. Dizem frases como por exemplo “somos todos iguais” , “temos de amar o nosso semelhante” mas depois, não há lugar nenhum do mundo em que as pessoas não façam coisas terríveis umas às outras e quanto pior fazem, mais cacarejam estas frases…




H.V. : E quanto à acção de uma Madre Teresa de Calcutá, por exemplo?

G.V. (Risos). O Christopher Hitchens apelidou-a de “Hell’s Angel”. Não havia nenhum ditador que ela não amasse profundamente. Tudo o que ela queria era apanhar pessoas nas ruas e torná-las cristãs. Depois, esperava que morressem o mais rapidamente possível.




H.V. : Bem, isso é normal porque ela, como católica, com certeza que achava que eles estariam muito mais felizes no céu.

G.V. Evidentemente





H.V. : O seu ultimo livro, “The Smithsonian Institution”, cuja capa é verdadeiramente “camp”…

G.V. A capa funciona como uma piada.




H.V. : Parece Scarlet O´Hara, com Tara a arder no horizonte, a ser vampirizada em primeiro plano por um surfista…

G.V. (Risos) Ele tem 13 anos. É pura pedofilia. A rapariga é a mulher de Grover Cleveland, que foi presidente dos Estados Unidos nos finais do século XIX. O seu retrato faz parte da galeria das mulheres dos presidentes. Na história, à noite, os retratos ganham vida e o rapaz, que trabalha como físico nuclear em 1939, (é um génio, especialista em física quântica,) fica lá trancado. Têm um caso amoroso e o Presidente Cleveland não se importa porque tem duas mulheres.




H.V. : O herói fala do sacrifício pessoal e da responsabilidade política e “tenta dar um sentido à História”. É essa a sua preocupação, neste momento?

G.V. É sempre essa a minha preocupação.




H.V. : No princípio dos anos noventa publicou um livro intitulado “Hollywood” e disse que era uma história acerca de Washington D.C. Essa analogia tinha a intenção de definir o poder, nos Estados Unidos, como uma fantasia, semelhante à produzida pela Meca do cinema?

G.V. (Risos) Gosto dessa interpretação. Mas o que eu quis foi estabelecer um paradoxo e aquilo a que chamei “Hollywood” era na realidade acerca de política e consequentemente sobre Washington D.C. Reportava-se aos primeiros tempos de Hollywood e à forma como, em determinada altura, Washington utilizou Hollywood e vice-versa.




H.V. : Refere-se à administração Kennedy? Ou à de Reagan quando essa promiscuidade atingiu o auge?

G.V. Foi muito antes disso. O Reagan não era nada. Claro que ele utilizou os métodos de propaganda que todos os usam só que ele os aprendeu melhor do que ninguém. O John Travolta, no começo de carreira, jantou um dia com um amigo meu à mesma mesa, um editor que, posso dizer, não estava nada entusiasmado com a ideia de ter ao seu lado aquele miúdo de New Jersey. Pensou que o jantar ia ser uma chatice e que não teria assunto de conversa. Finalmente, para quebrar o silêncio, virou-se para o Travolta e perguntou-lhe qualquer coisa do género, “ o que é que tencionas fazer quando cresceres e tudo isto acabar ” e o Travolta respondeu calmamente, “estou a pensar em entrar para a política”. O meu amigo ficou surpreendido e disse-lhe que não fazia a mínima ideia de que ele estivesse interessado em política, ao que o Travolta respondeu, “bem, eu não estou propriamente interessado, mas tenho observado os políticos na televisão e eles fazem exactamente o mesmo que eu, só que eu faço-o dez vezes melhor”.




H.V. : O que mostra que ele não é nada parvo…

G.V. Nada. Quando a Emma Thomson me perguntou como é que ele era, porque ia trabalhar com ele e eu lhe contei esta história, ela fartou-se de rir e percebeu perfeitamente a ideia .




H.V. : Em seu entender, Hollywood criou o sonho de uma Nação para os americanos. Todo o imaginário épico, todos os heróis, partiram do cinema.

G.V. Não há outro remédio, o cinema cria heróis, é um fenómeno universal que, realmente, começou na América embora os franceses gostem de dizer que se anteciparam. Mas nós arrebatámos o mundo e fornecemos sonhos, ideias e “ideias-lismos”. Uma vez estive num programa de televisão com a Lillian Gish, a primeira grande estrela de cinema e ela estava a falar dos seus filmes do tempo do mudo com D.W. Griffith e de repente disse, “nós tivemos o mundo nas mãos e perdemo-lo com os “talkies”” e eu retorqui, “como é possível fazer uma afirmação dessas se a maior parte dos grandes filmes são falados e já ninguém vê os filmes mudos” e ela respondeu, “pois é exactamente isso, as pessoas já não sabem ver. Dantes, toda a gente, qualquer camponês na China me conhecia e conhecia Charlie Chaplin e qualquer intelectual em Paris falava de mim e do Charlie Chaplin. Com o sonoro, os filmes tornaram-se nacionalistas, tiveram de ser dobrados ou traduzidos e há muita gente que não consegue ler as legendas.” E eu disse, “tudo isso está muito bem mas os filmes continuam a conquistar o mundo”, ao que ela respondeu: “Pode ser que sim, mas já não são PUROS”.




H.V. : O seu amigo Isherwood teve aquela expressão , “ I am a camera”. Será que ele queria desempenhar esse papel de recuperação da pureza perdida ?

G.V. Não, ele queria dizer que ia ser uma espécie de gravador de imagens, um registo das vidas das pessoas e que não iria manipulá-las para além daquilo que ele testemunhasse o que, evidentemente, é impossível.




H.V. : Tal como Faulkner e Fitzgerald também escreveu para o cinema. “Ben Hur” foi um dos seus filmes. Gosta de ser argumentista ou prefere a ficção?

G.V. Fazer filmes é muito divertido. É preciso lembrar que os realizadores não são auteurs.




H.V. : Mas na Europa, em França, por exemplo, há realizadores-autores…

G.V. Não, não há, nem mesmo em França. Há realizadores que também escrevem umas coisas. Há aí um mal entendido mas os franceses são peritos em mal-entendidos. Os grandes filmes devem o seu sucesso a quem escreve. São os argumentistas que têm uma ideia, que constroem o diálogo, que criam os personagens. Em Hollywood costumávamos dizer que os realizadores eram os cunhados dos directores dos estúdios. Depois, nos anos cinquenta, deu-lhes para se considerarem auteurs, convenceram-se que tinham um estilo próprio e nem sequer faziam referência aos escritores. Howard Hawks, Nicholas Ray, (que era um grande amigo meu e um dos piores realizadores que conheci), tinham aquela ideia do estilo, que não era mais do que o espelho das suas limitações, o que sabiam fazer mal repetido vezes sem conta. Por exemplo, tudo o que é cheio de sentimentalismo e bastante estúpido é, seguramente, de Frank Capra. Um dos poucos verdadeiros “auteurs” é Woody Allen que escreve, dirige, produz, representa. O mesmo acontecia com Orson Welles.




H.V. : E François Truffaut ?

G.V. Não gosto dos filmes dele, era demasiado sentimental. Mas concordo, ele era um “auteur” mas nunca conseguiu interessar-me com aquelas historietas de rapazes e raparigas de uma banalidade terrível. O Goddard é um simples exibicionista que se consegue safar razoavelmente. Mas, para mim, o único grande auteur em França é Jacques Prévert com “Enfants du Paradis”. Tudo o que Carné teve de fazer foi seguir o guião e…Estou outra vez a lembrar-me do Capra, escrevi agora sobre ele para a Newsweek. Uma vez despedi-o de um dos meus filmes chamado “The Best Man”. É verdade que ele ainda conseguiu fazer dois ou três bons filmes que foram escritos por Robert Riskin e só por causa disso. Eu conheci Riskin e ninguém fala dele, ao passo que o Capra - que não tinha miolos nenhuns, era um bocadinho lento e pateta e só percebia de tecnologia - é que é famoso.




H.V. : Quer dizer que todos esses grandes realizadores eram afinal uma fraude, inseguros e um pouco infantis?

G.V. Não há dúvida que o Capra era infantil…




H.V. : Isto vem a propósito de o que o Martin Amis disse a seu respeito, que era o único adulto na América, o único que se dava ao trabalho de pensar. Quer dizer que o resto dos seus concidadãos são umas crianças grandes que precisam de um pai, de uma espécie de “Big Brother”? Quando citou aquela frase do Unabomber que dizia que “os americanos estão a tornar-se animais domésticos” numa sociedade totalitária, era nisso que pensava?

G.V. Os americanos já têm um Big Brother. É uma sociedade com um controle muito apertado, é uma oligarquia, um país que está na mão de cerca de 1% dos seus habitantes que são donos dos “media” e das escolas.




H.V. : Sendo assim, os pontos nevrálgicos, a informação e a educação, são regidos por essa minoria?

G.V. Exactamente. Sem esquecer a parte do “entertainment”. No século XVIII , David Hume já tinha perguntado , “como é possível que um punhado de homens possam controlar um País?”.Chegou à conclusão que tal era possível através da opinião que, nessa altura, era controlada pela Igreja.




H.V. : Ele era ateu. O que, na realidade, não o ajudou nada na vida.

G.V. Sim, ele insurgiu-se por exemplo contra a educação obrigatória desde a infância, uma ideia de Napoleão Bonaparte, como o Vasco (Pulido Valente) me fez lembrar. Mas foram Bismark e Lincoln que impuseram o conceito de se tirar uma criança da tutela dos pais durante doze anos ou mais, para ser doutrinada. Hoje em dia põem as crianças a engolirem a doutrina do consumismo e nem uma palavra sobre os valores de cada país. Na América toda a História que é ensinada às crianças é deturpada.




H.V. : Pensa então que a História como a conhecemos - como escreveu em “Palimpsest” - é, tal como as suas Memórias, um “tecido de mentiras” ?

G.V. Muitas camadas de mentiras. Por exemplo há dois pontos essenciais que nunca são articulados : o primeiro é que somos um Império adquirido de forma sangrenta, uma prática que ainda está em vigor, e o segundo é que temos uma classe dominante que é brilhante mas que ninguém sabe que ela existe o que é sinal de que é uma classe muito astuciosa que compra tudo, incluindo as Universidades. É por isso que nem sequer Harvard ou Yale falam disso. A opinião pública é que controla a mente das pessoas, o que é suficiente para tornar qualquer um infantil. Tenho de ser cuidadoso porque estou num país católico mas a verdade é que o catolicismo também infantiliza as pessoas.




H.V. :A moral judaico-cristã é a base da nossa cultura ocidental e segundo a sua teoria foi ela que pôs termo ao espírito clássico, instituindo o “monoteísmo demente” e outras “perversões” contrárias à limpidez, à alegria, ao hedonismo do mundo pagão?

G.V. Sim, por isso é que o Iluminismo foi tão importante. Diderot e Voltaire tentaram dizer às pessoas que havia algo mais, uma outra realidade.




H.V. : Uma realidade que deu origem à muito sangrenta Revolução Francesa…

G.V. Sim, acabamos sempre por ficar com os dirigentes errados mas as ideias, certas ideias, é que são importantes. Foi a partir daí que surgiram “Os Direitos Do Homem” e a “Declaração da Independência” nos Estados Unidos. Convém lembrar que ficou estabelecido que o Homem tinha direito à Vida, à Liberdade e à Busca da Felicidade.




H.V. : Não acha que essa última parte está um pouco esquecida?

G.V. Sim , hoje em dia é mais a Busca dos Narcóticos…




H.V. : E quanto aos Direitos das Mulheres ? Rousseau abordou o assunto, Mary Woolstonecraft escreveu “A Reivindicação dos Direitos das Mulheres”. O que acha dos movimentos feministas?

G.V. (Risos) O feminismo é um sinal de prosperidade. Nos países pobres o feminismo é um luxo. Algumas feministas andaram por lá a pregar, mas como é que se pode pensar em liberdade se não se sabe quando é que se vai comer outra vez?




H.V. : Mas isso não acontece apenas com as mulheres. Quando as barrigas estão vazias, sejam elas de homens ou mulheres, o resultado é o mesmo.

G.V. Sim. Acho que foi Susie Brown Miller que lamentava ter sido tão dura para com os homens quando era nova. E dizia: “agora que estou velha tenho pena de não ter aproveitado enquanto pude”. (Risos)




H.V. : Acha que o mundo clássico estava mais bem organizado no que diz respeito às mulheres? Sabe-se que elas chegavam a participar em batalhas ao lado dos homens mas depois, quando voltavam a casa, recolhiam ao gineceu.

G.V. Sim , era assim entre os gregos.




H.V. : Plutarco, em “As Virtudes das Mulheres”, defende um tratamento semelhante para homens e mulheres, principalmente no que diz respeito às cerimónias fúnebres. Mas, no fim, diz que “as melhores mulheres são aquelas das quais não se ouve falar”. Acha que Plutarco tinha razão?

G.V. (Risos) Gosto dessa ideia que só demonstra que Plutarco era um homem cheio de tacto. Mas nessas questões prefiro citar Montaigne. Ele esteve muito apaixonado, não sexualmente, por um homem, um amigo que para ele, era um outro “eu”. O amigo morreu quando tinha trinta e poucos anos e ele nunca recuperou desse drama. Dizia que não tinha ninguém com quem falar e foi por isso que inventou os Ensaios. À medida que escrevia ficava cada vez mais convencido que as diferenças entre homens e mulheres eram poucas. Mas disse que o ideal seria uma mulher educada como um homem, com aquilo a que chamamos uma “mente masculina” mas com os encantos físicos, sexuais de uma mulher. Montaigne era marcadamente heterossexual e, para ele, esta era combinação ideal. Coitado, o amigo morreu cedo e depois ele arranjou uma amiga que não era muito esperta. Dentro desta perspectiva, talvez Aspasia fosse a mulher ideal.




H.V. : Aspasia encantou Péricles e até Sócrates, pela sua inteligência. Mas foi muito ridicularizada em Atenas.

G.V. É verdade, mas certamente era um género que agradaria ao pobre Montaigne.




H.V. : Falou em Montaigne e nessa “afinidade electiva” com Étienne de la Boétie. Consigo passou-se exactamente o contrário. O seu amor de adolescência por Jimmie Trimble, que morreu aos dezassete anos na Guerra, foi absolutamente físico. Anos mais tarde afirmou que mantém com Howard Austen, há já várias décadas, uma relação extraordinariamente feliz porque não existe sexo entre ambos. E citou aquela frase de Sócrates : “o sexo é um tirano louco e cruel”.


G.V. O que Sócrates disse, aos oitenta anos, foi : “finalmente estou livre desse senhor insano e cruel.” Claro que concordo com ele e até digo mais, nunca se deve ter sexo com amigos. O sexo é algo que se encontra por aí aos pontapés, mas não um amigo.




H.V. : Portanto, o que aconselha é que se pratique o sexo com perfeitos estranhos?

G.V. Sim, e com o maior número possível de estranhos. ( Risos)




H.V. : No entanto, para além do prazer, há ainda o problema da preservação da espécie.

G.V. O importante é “reproduzir-se e morrer novo”. Não nos podemos esquecer que o macho foi concebido para impregnar tantas fêmeas quanto possível, o mais rapidamente possível, enquanto que a mulher demora nove meses para “pôr o ovo“. Homens e mulheres estão em vias totalmente diferentes e muito me espanta o simples facto de se juntarem. Quando as mulheres pedem fidelidade tornam-se ridículas. A natureza é que manda e o homem o que tem na cabeça é que tem que f… qualquer coisa. A ideia de viver com a mesma pessoa até se chegar a velho é macabra, a menos que se trate de amigos.




H.V. : Essas ideias são de família. Em “Palimpsest” conta como a sua mãe casou pela segunda vez, um suposto “casamento branco”. Mas o marido queria ter filhos. Para evitar contactos, a sua mãe preferia recorrer a uma colher para “inserir os bichinhos”dentro dela. Foi uma autêntica precursora da inseminação artificial.

G.V. (Risos) Ela chamava-lhes “percevejos”. (bugs) Foi assim que a minha horrorosa e detestável mãe contava arranjar meios-irmãos para mim.




H.V. : E quanto às suas relações amorosas com mulheres? Fale-nos de Anaïs Nin e de Diana Lynn.

G.V. Houve quem dissesse que propus casamento a Anaïs, o que é um perfeito disparate porque nunca desejei casar-me e muito menos com uma senhora que, para mim, era já uma pessoa de idade, quando a conheci. Quanto a Diana, foi uma pessoa de quem sempre gostei, até porque nunca houve, de parte a parte, qualquer ideia de casamento.




H.V. : As instituições, como a religião, são para si motivo de reflexão irónica. Se estamos à beira de uma nova era teocrática acha que a proliferação de seitas, cultos e outros movimentos exteriores à Igreja institucionalizada representam um desejo de uma nova espiritualidade?

G.V. Todos os governantes pensam nisso. Constantino, quando se converteu ao catolicismo, sabia que era uma forma maravilhosa de escravizar o povo. Quando ele conglomerou o Império, não tinha infra-estruturas e não conseguia espalhar e fazer cumprir as suas leis. Por isso fez um acordo com a Igreja que já possuía uma grande organização, da qual ele se apoderou, em troca da institucionalização do catolicismo como religião oficial do Império. Claro que a religião católica era ideal para um Imperador porque era absolutista.




H.V. : Alexandre o Grande, Júlio César, Eleanor de Aquitânia tiveram a ideia de uma Europa unida. Nunca deu resultado durante muito tempo. Será que agora as condições são diferentes?

G.V. Tudo o que eles quiseram foi sempre o poder e não o bem estar das pessoas. Porque é que agora há-de ser diferente? O poder é agora de Bruxelas, o que significa impostos únicos e uma forma de controlar cada vez mais a vida das pessoas.




H.V. : E quanto aos Estados Unidos? Será que a força crescente da Europa vai alterar o equilíbrio de poderes entre o Leste e o Oeste? Qual é a posição de Clinton?

G.V. Clinton anda ocupado com os escândalos das Mónicas e das Paulas…




H.V. : O caos de que fala não poderá ser um caos criativo ? Ou será um prenúncio de anarquia?

G.V. Quem sabe? Haverá sempre pessoas criativas mas tudo depende do tipo de jogos que quiserem jogar. Cada país tem sempre uma maior percentagem de bons escritores do que bons leitores, é um fenómeno universal. A era da literatura está possivelmente a acabar, vivemos no reinado do audiovisual em que as crianças aprendem tudo através de jogos, em vez de lerem livros ou de terem quem lhos leia. É uma civilização totalmente diferente mas, quem sabe, pode até ser melhor.




H.V. : Na conferência de Lisboa falou da preservação da identidade e comentou que, se se transferir um grupo de Bengalis para a Noruega, isso representa um crime contra a sobrevivência. Foi pelas mesmas razões que defendeu a causa Palestiniana?

G.V. Absolutamente. É claro que as pessoas têm dificuldade em admitir estas ideias porque não são “politicamente correctas”. Mas a verdade é que precisamos rapidamente de um novo Voltaire.



H.V. :Pensa ser esse o seu papel, o de um Voltaire do século XX?

G.V. Talvez, porque não?

Sem comentários: